sexta-feira, 22 de maio de 2020

O COVID-zer sobre a gravida-de da situação no Triângulo


Um dos efeitos secundários da pandemia de COVID-19 foi trazer à luz inúmeras interdependências de pessoas, bens e serviços, bem como qual é a sua verdadeira importância. Pese embora nós, açorianos, estejamos habituados a vários tipos de isolamento, sobretudo devido a condições meteorológicas, o confinamento imposto por esta crise sanitária foi inédito e demonstrou como as especificidades de cada ilha, em todas as suas vertentes, jamais podem ser descuradas.

Vem isto a propósito das quarentenas que foram impostas, e entretanto excecionadas, aos utentes do Pico e de São Jorge que se deslocavam ao Hospital da Horta, na ilha do Faial. Mais especificamente, os doentes picarotos e jorgenses eram sujeitos ao cumprimento de uma quarentena obrigatória de 14 dias aquando do regresso à ilha de residência, no domicílio, imposição essa que terminou recentemente. E é sobre este assunto que vale a pena dissertar um pouco, pois existem alguns factos surpreendentes que merecem uma nota.

Em primeiro lugar, há que ressalvar que a melhor arma para fazer face a esta nova doença COVID-19 é o isolamento e o distanciamento social. Por essa mesma razão, todas as medidas que se enquadram nesse espírito são sempre bem-vindas, desde que ponderadas e aplicadas de forma equilibrada.

Assim, foi com naturalidade que surgiram, através da Circular Normativa n.º 32, de 22 de abril de 2020, as quarentenas obrigatórias para quem se deslocasse interilhas. No entanto, estavam excecionados os casos de força maior (devidamente autorizados pela Autoridade de Saúde Regional), os profissionais de saúde que se deslocassem para prestação de cuidados de saúde e, finalmente, quem se deslocasse, por via marítima, entre as ilhas do Faial, São Jorge e Pico, para o exercício de funções laborais.

Ora bem, esta última exceção teve o mérito de mostrar o reconhecimento pela Autoridade de Saúde Regional de que as gentes do Triângulo estão ligadas entre si de tal forma, sobretudo entre Pico e Faial, que cada ilha não pode ser olhada de forma isolada e sem ter em conta as ilhas vizinhas. Além disso, a medida afigurava-se tomada no momento certo, visto que o último caso diagnosticado de COVID-19 no Triângulo fora 15 dias antes, na ilha montanha (ou seja, a 7 de abril de 2020, registo esse que se mantém até hoje). No entanto, a Autoridade de Saúde Regional não excecionou mais ninguém que tivesse que se deslocar nos canais do Triângulo, incluindo os que eram obrigados a ir ao Hospital da Horta, na ilha do Faial.

Ressalvando que mais vale prevenir do que remediar, a verdade é que foi criado um sentimento de desigualdade entre quem ia trabalhar e quem ia ao hospital, isto em ilhas que se encontravam em situação epidemiológica semelhante. Aliás, a situação acabou sendo denunciada publicamente por grávidas da ilha montanha, cuja contestação à quarentena obrigatória chegou a ter destaque até na comunicação social nacional, com manchetes claras: "Grávidas da ilha do Pico têm de fazer quarentena depois de irem a consultas no Faial — Quem se desloca por motivos profissionais não tem de cumprir quarentena".

De entre as várias questões que se levantaram na altura relativas às quarentenas obrigatórias de quem se deslocava de uma ilha para a outra, o destaque vai... para uma resposta, curiosamente também sobre as grávidas da ilha montanha. Em concreto, o Diretor Regional da Saúde mostrou-se surpreendido com o número de grávidas que se deslocam do Pico para o Faial. É deveras interessante notar que a Autoridade de Saúde Regional eventualmente não estaria a par de toda a realidade relacionada com a saúde no canal Pico/Faial. Posto isto, torna-se relevante enquadrar alguns números relativos à natalidade no Pico e no Triângulo.

Segundo dados da Pordata, em 2019 nasceram 110 crianças da ilha montanha. Atendendo a que o hospital de referência das grávidas do Pico é o da Horta, na ilha do Faial, bem como, numa gravidez normal, o mínimo são seis consultas, feitas as contas existem 13 grávidas, em média, a atravessar o canal Pico/Faial por semana, isto apenas para consultas. Assim, não é de todo surpreendente se, num só dia, existirem seis grávidas a viajar de barco entre a ilha montanha e a ilha azul, tal como chegou a ocorrer em plena pandemia de COVID-19.

No entanto, outra estatística revelada pelos dados da Pordata poderá, essa sim, ser surpreendente para alguns: nos últimos oito anos (de 2012 a 2019) nasceram mais crianças do Pico do que de qualquer uma das outras ilhas do Triângulo — 40% do Pico, 39% do Faial e 21% de São Jorge. Posto de outra forma, e fazendo notar que é no Hospital da Horta que nascem a esmagadora maioria das crianças do Triângulo, pode-se afirmar que a maior parte dos recém-nascidos neste hospital vacinam-se igualmente nos primeiros dias de vida com uma viagem marítima, quiçá criando assim alguns anticorpos para enfrentarem as futuras viagens a que serão obrigados...

Felizmente, graças à evolução favorável da pandemia, a Circular Normativa n.º 32A, de 17 de maio de 2020 veio trazer alguma normalidade à população enferma do Triângulo: atualmente os utentes que se desloquem, por via marítima, entre estas três ilhas, para acesso a cuidados de saúde, estão dispensados de quarentena aquando do regresso à sua ilha. Além disso, é esclarecido pela Autoridade de Saúde Regional que "a situação epidemiológica nas ilhas do Triângulo é semelhante", bem como é sublinhado que o acesso aos cuidados de saúde por parte destes utentes "é habitualmente assegurado por meio de transporte marítimo" — palavras incontestáveis e que não deverão ser esquecidas no futuro.

Em suma, a gravida-de desta situação parece que diminuiu e praticamente voltou tudo ao normal no Triângulo, segundo o COVID-zer...

Haja saúde!

Post scriptum: Este artigo foi igualmente publicado na edição n.º 42.183 do 'Diário dos Açores', de 24 de maio de 2020.

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