domingo, 6 de fevereiro de 2022

A insensibilidade de um sindicato


Como é publicamente sabido, desde o dia 1 de dezembro de 2021 que está em vigor uma greve dos trabalhadores da Atlânticoline, a qual tem afetado as ligações marítimas entre Faial, Pico e São Jorge. Em particular, o Sindicato dos Trabalhadores da Marinha Mercante, Agências de Viagem, Transitários e Pesca (SIMAMEVIP) apresentou até ao momento três avisos prévios de greve respeitantes à totalidade dos meses de dezembro, janeiro e fevereiro, respetivamente.

Ressalvando que o direito à greve é algo inalienável e que nunca pode ser posto em causa, há no entanto um pormenor sobre esta greve que se tornou público, graças a uma resposta do Governo Regional a um requerimento relacionado, e que merece ser destacado.

Em concreto, no dia 15 de novembro de 2021, o SIMAMEVIP informou a Atlânticoline que entregou um aviso prévio de greve, sob a forma de paralisação total ao trabalho (entre as 00h00 do dia 01 de dezembro de 2021 e as 24h00 do dia 31 de dezembro de 2021), tendo igualmente o sindicato comunicado que apenas estava disponível para assegurar os serviços mínimos necessários para garantir a segurança das embarcações e instalações, bem como a realização de operações de transporte determinadas por situações de emergência.

Por outras palavras, este sindicato esqueceu-se que não existe forma de conexão e mobilidade alternativa direta entre as ilhas de São Jorge, do Pico e do Faial, bem como a necessidade de assegurar o número mínimo diário de ligações que permitam garantir a satisfação das necessidades sociais de mobilidade impreteríveis, por motivos de saúde e laborais.

Este poderia ter sido um lapso, mas não foi: na reunião subsequente de tentativa de conciliação da fixação dos serviços mínimos, o SIMAMEVIP foi inflexível, tendo o Tribunal Arbitral entrado em ação e fixado os serviços mínimos de acordo com o proposto pela Atlânticoline: a primeira e a última viagem do dia na Linha Azul, e uma viagem no período da manhã, todos os dias, na Linha Verde.

No dia 15 de dezembro de 2021, o sindicato apresentou um novo aviso prévio de greve, para entre os dias 1 e 31 de janeiro de 2022, refutando novamente a necessidade de assegurar viagens de transporte de passageiros, ao abrigo de serviços mínimos. Adicionalmente, na reunião subsequente de tentativa de conciliação da fixação dos serviços mínimos, o sindicato recusou novamente a prestação de serviços mínimos nos termos das decisões anteriores do Tribunal Arbitral, havendo necessidade de solicitar novamente que o Tribunal Arbitral se pronunciasse e impusesse às partes o cumprimento dos mesmos serviços mínimos.

Como não há duas sem três, no 13 de janeiro de 2022, o SIMAMEVIP voltou a emitir novo aviso prévio de greve, para os dias 1 a 28 de fevereiro de 2022, tendo novamente recusado a prestação de serviços mínimos de transportes de passageiros, em qualquer circunstância, só prevendo serviços mínimos para viagens para situações de emergência (urgência hospitalar, naufrágio, intempérie ou outra situação de força maior). Todavia, desta vez, na reunião subsequente de tentativa de conciliação da fixação dos serviços mínimos, o sindicato acabou por aceitar os termos dos anteriores acórdãos do Tribunal Arbitral para a prestação dos serviços mínimos.

Façamos agora uma análise de toda esta situação. Em primeiro lugar, uma greve em transportes públicos pode (e até é normal) perturbar o dia a dia dos respetivos passageiros, mas nunca deve impedir que estes possam chegar ao seu local de trabalho ou, ainda mais importante do que isso, que as pessoas sejam privados de aceder a cuidados de saúde. A título de exemplo, se o Metro de Lisboa estiver em greve total, sem qualquer serviço mínimo, um qualquer passageiro tem à sua disposição alternativas na capital portuguesa como os autocarros, os táxis, os TVDE e, nalguns casos, a própria viatura — claro que pode incorrer em custos extra, mas as alternativas estão lá. No caso de um paciente do Pico que tenha de se deslocar ao Hospital da Horta para uma consulta, exame ou tratamento agendado há meses, caso estivesse em vigor os serviços mínimos que foram propostos sucessivamente pelo SIMAMEVIP (isto é, só haveria barco em casos de emergência), esse paciente não teria nem autocarro, nem táxi, nem TVDE, nem mesmo poderia usar a própria viatura para chegar ao hospital!

Por outro lado, poder-se-ia dizer que este sindicato eventualmente consideraria que morar na ilha montanha e ter de ir ao Hospital de Horta para, por exemplo, um tratamento regular contra uma neoplasia seria um caso de força maior; todavia, se assim fosse, então o SIMAMEVIP teria certamente proposto algum tipo de viagens regulares nos serviços mínimos, o que nunca ocorreu.

Dito de outra forma, este sindicato ou não conhece de todo a realidade do transporte marítimo do Triângulo, o que se estranha, ou então ignorou por completo muitos passageiros (quiçá a maioria mesmo) que garantem indiretamente o sustento dos trabalhadores associados.

Contudo, e por falar em trabalhadores, estes merecem uma palavra de apreço: segundo os dados apresentados pelo Governo Regional, até ao momento, do universo de trabalhadores da empresa, 26 fizeram greve em algum momento, o que corresponde a 25% do total de trabalhadores, sendo que a Atlânticoline tem 34 trabalhadores sindicalizados no SIMAMEVIP. Põe-se então a seguinte questão: porque é que existe esta relativamente baixa adesão por parte dos trabalhadores? Talvez seja porque são eles que diariamente têm como companhia nas viagens marítimas quem mora numa ilha do canal Pico/Faial e trabalha na outra, bem como observam todos os dias dezenas e dezenas de pessoas, às vezes centenas, que só ali estão na embarcação por causa de uma ida ao hospital. Por outras palavras, os trabalhadores sabem que o serviço que prestam é deveras essencial, sobretudo às gentes da ilha montanha, que o consideram mesmo como o primeiro momento imprescindível de uma qualquer ida ao seu hospital de referência — e se num hospital tem de haver serviços mínimos adequados aquando de uma greve, na Atlânticoline não poderia ser de outra forma!

Em suma, a greve atualmente em vigor já cancelou cerca de 17% das viagens, um número que felizmente não chegou nem poderia chegar a 100% graças à intervenção do Tribunal Arbitral; 100% só mesmo o nível de insensibilidade deste sindicato, ao nunca ter proposto serviços mínimos condignos nos seus avisos prévios de greve.

Haja saúde!

Post scriptum: Este artigo foi igualmente publicado na edição n.º 42.670 do 'Diário dos Açores', de 8 de fevereiro de 2022.

Post post scriptum: Esta greve apenas terminou em 14 de março de 2022.

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