segunda-feira, 27 de maio de 2019

O milagre do vinho que transforma os últimos em primeiros


No próximo mês de junho, o arquipélago dos Açores terá a honra de receber a Sessão Plenária de 2019 da Assembleia das Regiões Vitícolas da Europa [link para mais detalhes sobre o programa]. Esta é uma reunião anual que junta as 75 regiões associadas e que dispõe de uma representação política e de uma representação interprofissional. Serão cerca de 100 participantes de vários países da Europa que terão a oportunidade de conhecer as especificidades e potencialidades da vinha açoriana. Pergunta agora o leitor: onde decorrerá esta sessão plenária? Antes de dar a resposta, tome-se nota de alguns dados.

Nos Açores existem várias regiões demarcadas, nomeadamente três Denominações de Origem (DO) e uma Indicação Geográfica (IG): DO-Pico, DO-Graciosa, DO-Biscoitos (na Terceira) e IG-Açores (que abrange as nove ilhas açorianas).

Segundo estatísticas do Instituto do Vinho e da Vinha, a produção de vinho nos Açores na campanha 2018/2019 (seja apto para certificação ou não) atingiu 13.286 hectolitros, com a seguinte distribuição [ver gráfico]: 66,7% no Pico; 16,0% na Terceira; 12,6% em São Miguel; 2,4% na Graciosa; 1,8% em São Jorge; 0,5% em Santa Maria; e 0,1% no Faial (não estão disponíveis dados para Flores e Corvo).


Destaque adicional merece ainda a ilha montanha: se for considerado apenas a produção de vinho apto a certificação, na campanha 2018/2019 foi produzido no Pico 79% do vinho IG-Açores, 92% do vinho de Denominação de Origem Protegida (DOP) da região e 100% do vinho licoroso DOP açoriano.

Por outro lado, vale a pena recordar que a Paisagem da Cultura da Vinha da ilha do Pico é de tal forma única que:

Posto isto, adivinhe agora o leitor em que ilha decorrerá a Sessão Plenária de 2019 da Assembleia das Regiões Vitícolas da Europa... Será que, porventura, São Miguel foi escolhida por ser a ilha onde habitualmente decorrem a maioria dos eventos internacionais que têm lugar nos Açores e por ter as melhores acessibilidades com o exterior? Será que foi a Terceira, segunda ilha que mais produz vinho nos Açores, que contém uma região demarcada e que tem as segundas melhores acessibilidades com o exterior? Ou será que foi o Pico, ilha com a maior tradição vitícola nos Açores, com uma região demarcada que incorpora vinhas que são Património Mundial e que produz dois terços de todo o vinho açoriano?

E a resposta é... nenhuma das anteriores, porque a Sessão Plenária de 2019 da Assembleia das Regiões Vitícolas da Europa decorrerá na ilha do Faial (!), pese embora tenha uma visita de campo à ilha do Pico.

Poder-se-á, então, conjeturar que esta escolha (Faial com visita ao Pico) surge por questões logísticas, eventualmente relacionadas com o alojamento ou com um espaço adequado para as reuniões. Ora bem, segundo dados do Serviço Regional de Estatística dos Açores (SREA), atualmente o Pico dispõe na Hotelaria Tradicional (onde normalmente se alojam este tipo de participantes) cerca de 500 camas, ou seja, cinco vezes mais do que o necessário para acomodar os participantes, não distando assim tanto das 800 camas disponíveis no Faial; além disso, a ilha montanha possui muito mais camas na modalidade Alojamento Local (cerca de 2000 camas), sendo que são vários os alojamentos que não só replicam o aspeto das tradicionais adegas de pedra do Pico, bem como se localizam bem próximo das vinhas, o que decerto proporcionaria uma experiência inesquecível aos participantes em questão. Em relação a um espaço para a reunião, convém recordar que o Auditório da Madalena (curiosamente localizado no concelho que é Capital dos Açores da Vinha e do Vinho) é nada mais nada menos do que a maior sala de espetáculos e de projeção das ilhas do Triângulo (tendo uma capacidade para 400 lugares), e que eventualmente poderia ser utilizado nesta Sessão Plenária.

Posto isto, parece não haver razões para se entender esta escolha de a Assembleia das Regiões Vitícolas da Europa não ter lugar na ilha montanha, sendo que ao Pico só vêm fazer uma visitinha... Tem tanta lógica esta decisão tal como se uma conferência internacional sobre chá decorresse em Santa Maria com uma visita de campo a São Miguel, ou então (uma comparação bem mais justa) se um próximo congresso das "Mais Belas Baías do Mundo" tivesse lugar no Pico com um dia de visita à cidade da Horta...

Considerando tudo o que aqui foi dito, se ainda não foi possível descortinar as razões de a Sessão Plenária de 2019 da Assembleia das Regiões Vitícolas da Europa não decorrer na ilha que produz dois terços do vinho dos Açores, e que tem uma região demarcada que incorpora vinhas que são Património Mundial, então só podemos estar perante um milagre do vinho: aquele que consegue transformar os últimos em primeiros, colocando os holofotes desta reunião internacional sobre viticultura num local que produz apenas 0,1% do vinho açoriano!

Haja saúde!

Post scriptum: Este artigo foi igualmente publicado na edição n.º 41.885 do 'Diário dos Açores', de 1 de junho de 2019, bem como na edição n.º 788 do 'Jornal do Pico', de 14 de junho de 2019. Na sequência deste artigo houve várias reações que motivaram um novo escrito sobre este assunto.

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