quarta-feira, 27 de dezembro de 2017

O desajuste nas Obrigações de Serviço Público Aéreas entre os Açores e o Continente


O arquipélago dos Açores apresenta, nas ligações aéreas com o Continente portugês, um modelo misto de serviço, o qual depende da gateway açoriana que se escolha (uma gateway corresponde a uma porta de entrada/saída dos Açores, sendo que existem cinco):
  • As rotas entre o Continente e as ilhas de São Miguel e Terceira operam em mercado livre, ou seja, sem qualquer obrigação por parte das companhias aéreas;
  • As ilhas de Santa Maria, do Pico e do Faial são servidas respeitando umas Obrigações de Serviço Público Aéreas (OSPA), as quais regulam a frequência mínima de viagens por semana, a obrigatoriedade em transportar carga, o tipo de aeronave que deve ser utilizado, etc.
A existência de obrigações de serviço público prende-se com a necessidade de garantir continuidade territorial (quer para passageiros, quer para carga) em locais onde o mercado por si só não tornaria viável uma operação regular. Por exemplo, a garantia de que irá ser realizado um voo sujeito a obrigações de serviço público, independentemente do número de passageiros a bordo, permite que se possa planear o transporte de correio ou carga muito importante para os residentes (ex. importação de medicamentos ou exportação de pescado). Assim, as obrigações de serviço público são essenciais para combater o isolamento das ilhas abrangidas por estas regulamentações.

Contudo, e como tudo na vida, estas obrigações têm um custo associado para todos nós contribuintes, pois é necessário compensar a companhia aérea que opera nestes moldes. Por outras palavras, poder-se-ia impor vários voos diários para o mesmo destino durante todo o ano, mas tal decisão não só estaria desfasada da realidade (provavelmente a maioria dos voos teria uma baixa taxa de ocupação), bem como isso seria extremamente dispendioso para o erário público.

Torna-se importante, por isso, impor umas obrigações de serviço público que façam sentido para cada um dos destinos em questão, bem como ir avaliando permanentemente se as mesmas se mantêm ajustadas à realidade. E é nesse sentido que aqui se analisa as atuais Obrigações de Serviço Público Aéreas (OSPA) entre os Açores e o Continente, focando a análise nas capacidades globais mínimas de lugares.

Para uma determinada rota, a capacidade global mínima de passageiros corresponde à soma dos lugares que têm de ser oferecidos na ida e na volta durante um determinado período de tempo — no caso das OSPA, um ano é dividido em duas partes, correspondendo uma ao Inverno IATA (do último domingo de outubro ao último sábado de março) e outra ao Verão IATA (do último domingo de março ao último sábado de outubro).

As capacidades globais mínimas de lugares são um factor menos visível para os passageiros (quando comparado com as frequências mínimas, por exemplo) mas são de extrema importância quer para a transportadora aérea, quer (indiretamente) para todos nós:
  • A companhia de aviação tem de garantir que disponibiliza, pelo menos, o número de lugares indicado nas obrigações de serviço público, o que significa que, na prática, o planeamento é feito considerando que vão sempre viajar aquele número de pessoas, quer depois o façam ou não;
  • Se a capacidade mínima imposta for muito superior à ocupação real, então não só a transportadora aérea tem um planeamento completamente desajustado face à realidade, bem como o prejuízo que daí advém tem de ser compensado pelos contribuintes;
  • No caso de existirem muito mais pessoas a querer viajar do que aquelas previstas nas obrigações de serviço público, então podem ocorrer situações menos benéficas para os passageiros, quer sejam voos que só são programados "em cima da hora" porque a procura excedeu a oferta imposta pelas OSPA, quer seja mesmo a inexistência de "voos extra" devido ao facto de a companhia de aviação já estar a cumprir com "os mínimos" e não ser obrigada a mais.
Resumindo, é fundamental garantir um equilíbrio entre as capacidades de lugares oferecidas e os passageiros efetivamente transportados.

Analise-se, então, como correram as últimas duas estações IATA para as rotas sujeitas a OSPA entre os Açores e o Continente, recorrendo ao Serviço Regional de Estatística dos Açores, e compare-se com as respetivas capacidades globais mínimas de lugares — vide tabelas.

Inverno IATA 2016/2017
Rota Cap. mínima PAX transportados Diferença
LIS - S. Maria - LIS 5 500 3 457 -2 043
LIS - Pico - LIS 5 500 6 251 751
LIS - Horta - LIS 28 000 17 129 -10 871

Verão IATA 2017
Rota Cap. mínima PAX transportados Diferença
LIS - S. Maria - LIS 9 500 10 480 980
LIS - Pico - LIS 9 500 22 585 13 085
LIS - Horta - LIS 60 000 62 064 2 064

Começando pelo Inverno IATA, verifica-se que a rota Lisboa - Pico - Lisboa é a única onde viajaram mais pessoas face aos lugares mínimos disponibilizados. Relativamente às rotas que servem Santa Maria e o Faial, em ambas foram disponibilizados muitos mais lugares do que os passageiros transportados, o que significa que as capacidades globais mínimas para estas rotas estão bastante desajustadas por excesso face à realidade (a diferença em número absoluto é maior na rota Lisboa - Horta - Lisboa, pese embora em ambos os casos verifica-se que mais de um terço dos lugares oferecidos não foram utilizados).

Considerando agora o Verão IATA, em todas as rotas foram transportadas mais pessoas em comparação com os lugares mínimos disponibilizados. Contudo, a rota Lisboa - Pico - Lisboa volta a ter uma posição de destaque, desta vez porque viajaram mais do dobro dos passageiros face à capacidade global mínima — mais nenhuma outra rota apresenta um tão grande desajuste por defeito face à realidade.

Em suma, a grande conclusão a tirar é que as três rotas aéreas sujeitas a obrigações de serviço público entre os Açores e o Continente não têm as capacidades globais mínimas ajustadas à realidade: no inverno há excesso de oferta nalgumas rotas, enquanto no verão há um défice de oferta mínima face ao número de passageiros transportados. Assim, é importante que a próxima revisão das obrigações de serviço público corrija este desajuste que se verifica atualmente.

Por fim, é justo reconhecer que quando se fala em quebrar o isolamento de ilhas e em serviço público, é preferível que as contas sejam feitas ligeiramente por excesso, de forma a garantir um bom equilíbrio entre servir toda a gente e os impactos para os contribuintes. Por outro lado, também é justo afirmar que a ilha do Pico pode ser classificada como a mais prejudicada pelas atuais obrigações de serviço público, pois as capacidades globais mínimas que lhe estão atribuídas estão claramente subdimensionadas.

Haja saúde!

Post scriptum: Esta análise foi igualmente publicada na edição n.º 41.457 do 'Diário dos Açores', de 28 de dezembro de 2017, bem como na edição n.º 715 do 'Jornal do Pico', de 12 de janeiro de 2018.

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