segunda-feira, 3 de outubro de 2016

Carta aberta aos Secretários Regionais da Solidariedade Social e da Saúde sobre os cuidados continuados na ilha do Pico


Excelentíssima Senhora Secretária Regional da Solidariedade Social e Excelentíssimo Senhor Secretário Regional da Saúde,

O meu nome é Ivo Sousa, tenho 31 anos e sou investigador de pós-doutoramento no Instituto de Telecomunicações, polo do Instituto Superior TécnicoUniversidade de Lisboa. No entanto, o que tenho mais orgulho, e que indico sempre na minha biografia de artigos científicos dos quais sou autor, é o facto de ser natural da ilha do Pico.

Apesar de passar a maior parte do tempo a cerca de 1700 km da minha terra natal, tento seguir atentamente o que acontece na ilha montanha e o que tem impacto no dia a dia dos picarotos. Por este motivo, presto particular atenção às noticias sobre a minha ilha e foi assim, através da comunicação social, que tive conhecimento da entrada em funções da Unidade de Cuidados Continuados Integrados da ilha do Pico neste mês de outubro de 2016. Como fiquei intrigado com o modo de funcionamento desta unidade, decidi analisar em profundidade este tema e partilhar convosco as conclusões a que cheguei.

Em primeiro lugar, e devido ao facto de não ser clínico nem especialista nesta área, debrucei-me sobre tentar descobrir o que significa e quais os benefícios de existir uma unidade de cuidados continuados integrados na ilha do Pico. Esta minha pesquisa levou-me ao Decreto Legislativo Regional n.º 16/2008/A, o qual criou a rede de cuidados continuados integrados da Região Autónoma dos Açores e onde está expresso que esta rede pretende "garantir a coordenação das áreas de saúde e ação social, potenciadoras de soluções enquadradas nas respetivas prestações típicas e adequadas às necessidades das pessoas idosas, das pessoas com perda de funcionalidade e dos doentes terminais".

Assim, e tendo em conta o elevado índice de envelhecimento da população da ilha do Pico — aliás, a ilha montanha regista o segundo maior índice de envelhecimento a nível regional, sendo apenas superada pela ilha das Flores — pude concluir que a implementação de uma unidade de cuidados continuados integrados na ilha do Pico é claramente uma mais-valia para os picarotos. Por esse motivo, quero desde já saudar Vossas Excelências por, como decisores políticos, terem contribuído para que esta nova valência da ilha do Pico seja uma realidade.

Porém, a notícia da entrada em funções da Unidade de Cuidados Continuados Integrados da ilha do Pico também suscitou em mim outras questões. Recordando que foi anunciado que esta unidade está instalada no Centro de Saúde da Madalena, sendo composta por 10 camas para internamentos de média duração e reabilitação (IMD) e por 15 camas para internamentos de longa duração e manutenção (ILD), perguntei a mim próprio se esta mais-valia não poderia ser distribuída por outros locais da ilha montanha, ficando assim ainda mais próxima dos picarotos. Voltando a lembrar que não sou um entendido na área da saúde, mas também não deixo de ser um paciente que deseja sempre obter o melhor serviço possível, decidi então comparar o que foi implementado no Pico com o que existe no restante território açoriano, tendo obtido conclusões surpreendentes, as quais passo a apresentar.

Neste meu estudo, comecei por tomar nota das linhas mestras para o funcionamento da Rede Regional de Cuidados Continuados Integrados, as quais foram apresentadas publicamente por Vossas Excelências no dia 26 de janeiro de 2015. Na altura, foi mencionado que esta rede abrangeria nesse ano todas as ilhas dos Açores e funcionaria todos os dias do ano, sendo composta, entre outros, por 15 unidades de internamento de cuidados continuados, incluindo algumas unidades sediadas em Instituições Particulares de Solidariedade Social (IPSS). Para melhor compreender a distribuição destas unidades de internamento de cuidados continuados, consultei então o documento oficial associado a esta apresentação pública, mais concretamente o Despacho n.º 198/2015, o qual detalha como são criadas as unidades de internamento em questão, e extraí os seguintes dados:
  • Excetuando a ilha do Corvo, todas as restantes ilhas dos Açores são contempladas com pelo menos uma unidade de internamento, perfazendo efetivamente um total de 15 unidades, sendo que este tipo de valência na Terceira e no Faial, bem como em alguns casos em São Miguel, está sediado em IPSS;
  • Para a ilha montanha estão indicadas 10 camas IMD e 15 camas ILD para uma única unidade sediada no Centro de Saúde da Madalena;
  • Novamente excetuando o Corvo, dos restantes concelhos açorianos onde existem centros de saúde, apenas os de São Roque do Pico e das Lajes do Pico não são contemplados com camas para internamentos de cuidados continuados.
Com base nestas informações, o que posso concluir é que as unidades de internamento em questão não necessitam de estar sediadas em centros de saúde, que o total de camas previstas para a ilha do Pico coincide com as existentes na unidade recentemente criada no Centro de Saúde da Madalena e que os restantes centros de saúde da ilha montanha não terão esta valência. Esta última conclusão foi bastante surpreendente para mim, pois entendo que a mesma entra em contradição com um ponto do comunicado da Secretaria Regional da Saúde sobre o serviço de saúde na ilha do Pico, emitido no final de 2014, e onde estava expresso o seguinte:
Nos centros de saúde em que não está prevista a presença física de um médico 24 horas [São Roque do Pico e Lajes do Pico], o internamento será garantido nos moldes dos cuidados continuados, em que há acompanhamento de enfermagem 24 horas por dia.
Contudo, durante este meu estudo descobri um outro documento intrigante: no dia seguinte à divulgação do despacho supracitado, foi publicado no Jornal Oficial da Região Autónoma dos Açores a Declaração de Retificação n.º 6/2015, a qual refere que esse despacho que criou as unidades de internamento de cuidados continuados saiu com "inexatidões". Mais concretamente, esta retificação somente abordou o caso concreto da ilha do Pico e apenas substituiu a distribuição de camas para este tipo de internamento, mantendo um total de 10+15 camas (IMD+ILD) mas integrando unidades sediadas nos três centros de saúde da ilha montanha, de acordo com a tabela seguinte.


Considerando esta retificação oficial e tendo também em atenção tudo o que já mencionei até agora, posso então tirar novas conclusões, nomeadamente:
  • Segundo os serviços competentes do Governo Regional dos Açores, os centros de saúde de São Roque do Pico e das Lajes do Pico não só tinham capacidade para receber camas para internamentos de cuidados continuados, bem como foi determinado oficialmente que efetivamente iriam receber essa valência;
  • A retificação referida anteriormente vai de encontro ao que foi mencionado no comunicado da Secretaria Regional de Saúde, implicando também que o número total de unidades de internamento de cuidados continuados nos Açores deveria ser 17 e não 15;
  • Isto significa que, aquando da apresentação pública das linhas mestras para o funcionamento da Rede Regional de Cuidados Continuados Integrados, deve ter havido um lapso porque apenas foram anunciadas a criação de 15 unidades de cuidados continuados na Região;
  • Por fim, e atendendo ao que se verifica no presente, está-se perante uma nova contradição, pois a ilha do Pico tem neste momento todas as camas associadas a esta valência concentradas no Centro de Saúde da Madalena.
Decerto concordarão comigo que existe alguma incoerência entre o que foi publicado em jornal oficial e a realidade. No entanto, também sei que os recursos da Região (humanos, financeiros, etc.) não são ilimitados e que é preciso racionalizar os mesmos. Todavia, é do meu entendimento que deve haver equidade para todos os açorianos, independentemente da ilha em que residem. Por outras palavras, entendo ser razoável que se concentre as camas para internamentos de cuidados continuados em questão na ilha montanha desde que isso signifique que os picarotos estão, em média, dentro da mesma ordem de grandeza de distância a esta valência comparativamente com qualquer outra ilha. Como gosto de números e estes são o meu instrumento de trabalho, decidi por isso investigar a que distância da unidade de cuidados continuados integrados mais próxima da sua residência estão os habitantes de cada uma das ilhas dos Açores que também possuem este tipo de unidades de internamento.

Seguindo o mesmo método indicado na carta aberta ao Senhor Secretário Regional da Saúde sobre o serviço de saúde na ilha do Pico, a qual foi por mim redigida no início de 2015 e que entreguei em mão ao destinatário nessa mesma altura, apresento de seguida duas estatísticas para cada ilha, assumindo para o caso da ilha montanha a concentração de camas para internamentos de cuidados continuados no Centro de Saúde da Madalena (a situação que se verifica atualmente): a primeira estatística corresponde à média ponderada da distância de condução pela densidade populacional, ou seja, corresponde à soma dos produtos entre a distância à unidade de cuidados continuados mais próxima e a população de cada freguesia a dividir pelo número total de habitantes da respetiva ilha; a segunda estatística corresponde à distância máxima de condução entre uma certa freguesia em cada ilha e a respetiva unidade de cuidados continuados que lhe é mais próxima.


Os resultados obtidos são deveras reveladores da discriminação que os picarotos sofrem em relação à restante realidade açoriana. Imaginando uma pessoa no Pico que pretenda visitar um familiar seu que se encontra internado em cuidados continuados, esta tem de se deslocar, em média, mais do dobro (21,2 km) do que qualquer outra pessoa residente noutra ilha (menos de 10 km). Adicionalmente, um residente na ilha montanha dista da respetiva unidade de cuidados continuados, no máximo, um pouco mais de 50 km (52,0 km), o que corresponde a mais de 21 km do que o pior caso verificado nas restantes ilhas (30,7 km). Naturalmente que é preciso também ter em conta a viagem de regresso, acentuando ainda mais a diferença entre a situação existente na ilha do Pico comparativamente ao que se passa no resto da Região.

Os exemplos elencados anteriormente podem não servir, do ponto de vista estritamente medicinal, como justificação para determinar a localização de unidades de cuidados continuados. Cumprindo de certa forma com o ditado popular "não há duas sem três", sublinho novamente que sou um leigo em termos de conhecimentos clínicos e assumo que são sobretudo os avanços da medicina que contribuem para o bem-estar de um qualquer paciente. No entanto, também sei que não existe nenhum medicamento mágico que induza instantaneamente boa disposição num doente, apesar de achar que o sorriso de um amigo ou de um familiar por vezes consegue esse "milagre". Posto isto, a situação que se verifica presentemente na ilha do Pico claramente irá contribuir para que menos pessoas visitem os seus familiares internados, para além de reforçar o sentimento existente na sociedade picoense de que os cuidados de saúde estão distantes da população.

Termino esta minha missiva apelando a Vossas Excelências para que reflitam sobre as conclusões a que cheguei e para que tomem as medidas adequadas de forma a que não só os picarotos sintam que o que está escrito é para ser cumprido, bem como percecionem que, como açorianos, estão em pé de igualdade com os habitantes de outras ilhas considerando situações equivalentes. Despeço-me atenciosamente recorrendo a um dito muito antigo mas sempre atual:

Haja saúde!

Post scriptum: Esta carta aberta foi enviada para os correios electrónicos das Secretarias Regionais da Solidariedade Social e da Saúde, contactos esses que estão disponíveis na página oficial do Governo Regional dos Açores. Adicionalmente, esta carta aberta foi publicada na edição n.º 41.095 do 'Diário dos Açores', de 5 de outubro de 2016. No dia 31 de outubro de 2016 foi noticiado que a Unidade de Cuidados Continuados Integrados da ilha do Pico não está ainda a funcionar em pleno [link]. Nota ainda para um agradecimento ao amigo Rui Pedro Ávila, por ter ajudado a divulgar esta carta aberta através do seu espaço de opinião no 'Jornal do Pico', edição n.º 653, de 4 de novembro de 2016. No dia 21 de novembro de 2016, a Secretaria Regional da Solidariedade Social respondeu informando que o conteúdo da carta fora reencaminhado para a Secretaria Regional da Saúde, "por ser matéria que se insere no âmbito de competência daquele Departamento Governamental". No dia 28 de março de 2017, a Secretaria Regional da Saúde respondeu informando que "mantém-se a previsão de estabelecer resposta ao nível de cuidados continuados nos três Centros de Saúde" e que "a opção de iniciar o processo de implementação no Centro de Saúde da Madalena prendeu-se com o facto de dispor, no imediato, dos recursos humanos e físicos necessários a este tipo de cuidados".

4 comentários:

  1. Great investigative reporting! I think public administrations in the Azores are used to people not checking into them and doing what they like but, thanks to the internet and blogs like this, need to rapidly become more honest, open and efficient in their activities.

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  2. Boa Ivo. Muito bem elaborado. Parabens. É muito importante este assunto. Haja saúde. W

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